As Obras de Misericórdia Corporais e Espirituais



    A Palavra de Deus nos revela a misericórdia a partir de situações concretas: “a misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta com que Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até o mais íntimo de suas vísceras” (MV n. 6). “Eterna é a sua misericórdia” dirá o salmista (Sl 136), pois reconhece que Deus tem se manifestado assim ao longo da história do povo eleito. Ser misericordioso significa ter um coração solidário com os que têm necessidade. Ela se associa a ideia que temos de compaixão e perdão. Em muitas pessoas esse agir misericordioso tem se manifestado de modo admirável, particularmente nas dificuldades sociais, econômicas ou mesmo em desastres naturais. A um sentimento comum que une as pessoas, a solidariedade e também a identificação com o sofrimento do outro, que nos faz humanos.
    É nessa perspectiva que se inserem as obras de misericórdia corporais e espirituais. Jesus dá aos seus discípulos uma ideia de comunhão ainda maior com Ele, que se fez um de nós: “Foi a mim que fizeste” (Mt 25,40). No Antigo Testamento já o profeta pensava em ações concretas pelo outro que se identificavam com o querer de Deus (cf. Is 58,6-7). Jesus se identificou com a humanidade sofredora e ao mesmo tempo nos indica o caminho do testemunho cristão, que não se situa apenas nas exigências materiais, mas também no exercício das virtudes que se fazem necessárias para vivenciar certas circunstâncias da vida, nossa e do outro.
    Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual, lembra o Papa em sua Bula de convocação (cf. n. 15). É a partir delas que nos abrimos para a experiência desse Ano Santo, despertando nossa consciência tantas vezes adormecida. Lembremos as obras de misericórdia corporal: dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos, assistir aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. Espirituais: dar bom conselho, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo, rezar a Deus pelos vivos e defuntos (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2447).
    No ocaso da vida seremos julgados pelo amor, lembra São João da Cruz. Esse amor foi o desdobramento de muitas coisas em nossa vida para torna-lo concreto nas ações de nossa vida. A liturgia dominical nos tocará particularmente pelos relatos de Lucas nesse Tempo Comum: Jesus veio inaugurar não só um ano, mas o tempo da misericórdia, que se desdobrará na vida a na ação dos seus discípulos e discípulas, particularmente para com os mais pobres, nos lembra o evangelista. Em Mateus, Jesus se identifica com os ‘pequeninos’, e penso que entendemos que ele não se refere literalmente a crianças (Mt 10, 40.42).
    Nas Sagradas Escrituras a misericórdia se traduz como expressão de um sentimento que se experimenta diante de uma necessidade e infortúnio, assim como a ação que surge desse sentimento, significando ter compaixão e piedade, compadecer-se, sentir afeto entranhável (como uma mãe), ser compassivo, amar, ter carinho e terna emoção, apiedar-se, ajudar como fruto de uma relação de fidelidade, nas ações concretas que isso comporta. O próprio Jó traduz o que foi a sua vida de piedade (cf. Jó 31,16-17.19-21). O autor do Eclesiástico aponta um caminho (cf. Eclo 7,32-35).  No Novo Testamento encontraremos vários textos que bebem dessas mesmas fontes antigas, mas que tiveram uma clara compreensão a partir das palavras e do agir de Jesus: “Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia” (Mt 5,7) diz Jesus em Mateus, já apontando para o seu discurso sobre o juízo universal (Mt 25,31-46). São muitos os comentários dos Santos Padres sobre esse texto e seus significados práticos na vida cristã.
    No seu corpo, o ser humano pode experimentar a falta de recursos ou sofrer carências que são constantemente necessárias, sejam internas ou externas.  Dar de comer a quem tem fome (Mt 25,35) tornou-se uma obra eclesial derivada da ação de Jesus. Sabemos que ainda em muitos países pobres persiste a carência de alimentação e quantas vidas sucumbem diante dessa realidade. Erradicar a fome no mundo faz parte dessa nova era global para preservar a paz e da subsistência da terra, a escassez não vem tanto no aspecto material, mas na falta de recursos sociais. O gesto da Eucaristia, partilha, doação, nos recorda constantemente que há uma fome que só Jesus pode saciar, e há uma outra que com Ele podemos aprender a sanar. Dar de beber a quem tem sede (Mt 25,35). A água tem um profundo significado no mundo bíblico e hoje é discutido em seu significado ecológico no compromisso de conservação dos mananciais e do acesso a todos a água potável. Vestir o nu (Mt 25,36). Na Bíblia a nudez tem um tom negativo, seja como fruto do pecado ou da indigência de quem não tem o necessário para defender-se do frio. Repartir, como fizeram alguns santos, é um gesto de solidariedade humana. Acolher o forasteiro (Mt 25,35). Israel, em sua condição de peregrino, não deve esquecer a sua experiência e deve estar atento aos que sofrem a mesma condição. Algumas sociedades se organizam com centros de acolhimento ao forasteiro. Assistir os enfermos (Mt 25,36). A doença revela a fragilidade humana em sua finitude, por isso a Sagrada Escritura recomenda a visita, a presença e o conforto (oração, unção dos enfermos [At 28,8s; Tg 5,14s]), também a ajuda necessária. Visitar os presos (Mt 25,36). A solidão gerada pelo isolamento da sociedade deve solicitar da mesma algum gesto de solidariedade ao encarcerado. No mundo bíblico, particularmente do Novo Testamento, a comunidade cristã deve ser solidária (comunhão de oração) e presente materialmente aos encarcerados por motivos de fé, como o foram os apóstolos e o próprio Paulo. A Pastoral Carcerária leva em conta não somente o preso, mas também sua família. Por traz desse trabalho há também uma reflexão de caráter político sobre a dignidade do homem e dos direitos humanos.  Enterrar os mortos (Tb 1,17; 12,12s). Essa prática comum a muitos povos, era vista por Israel como uma obra de piedade, particularmente destacada no livro de Tobias. Quanto a cremação, mesmo preferindo a inumação, a Igreja já não faz objeção em acompanhar religiosamente os que fazem tal opção. Essa obra de misericórdia está associada à nossa fé na imortalidade do ser humano.
    Os seres humanos sofrem carências relativas à sua dimensão espiritual, daí as obras de misericórdia espirituais, que tem um valor ainda maior que as de ordem material. Se as outras obras podem ter um caráter mais comunitário ou organizativo para vivê-las, as de ordem espiritual são confiadas a cada indivíduo. A sua formulação remonta a época patrística, já com Orígenes e sua interpretação alegórica de Mt 25. Santo Agostinho estendeu tal reflexão sendo coroada no mundo acadêmico particularmente por São Tomás de Aquino. Elas estão agrupadas nos três blocos que se seguem.
- Ser vigilantes. Um olhar para fora de nós mesmos, numa atitude de compaixão e amor em relação a todos os necessitados e em favor dos ignorantes e errantes. Dar bom conselho, que conduzam para o bem e a salvação do indivíduo, tanto quanto é importante ‘ouvir’ o próprio coração ou a consciência, pedindo a Deus a sabedoria necessária. Para o nosso tempo o mais sensato é aconselhar provocando interrogações quando se está em jogo o sentida da vida e o futuro do indivíduo. Ensinar os ignorantes, vai na linha da ajuda aos que querem compreender os caminhos da fé. Corrigir o que erra, particularmente no contexto dos conflitos que se dão na comunidade de fé (Mt 18,15-17; cf. Tb 3,10), a chamada correção fraterna. Esta exige discernimento sobre o quando, o modo, o conteúdo necessário, como ajuda e não como juízo, tendo presente a regra de ouro: faça ao outro o que você gostaria que lhe fizessem.
- Ter espírito conciliador. Tal espírito se exerce como atributo fundamental do discípulo de Cristo. Consolar os tristes. O Deus consolador foi experimentado por Israel em vários momentos de sua história; Jesus é também consolador, pois oferece alívio a todos aqueles que estão cansados e esgotados (cf. Mt 11,28-30). Paulo bem o experimentou em suas tribulações. A função de consolar, na Igreja, é essencial já que testemunha o Deus que consola os pobres e aflitos. Perdoar as injúrias. O Deus que perdoa nos convida a perdoar, exorta Jesus, ao mesmo tempo que nos chama à consciência de que também somos pecadores. Só o perdão possibilita uma um novo amanhã. Suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo. Se Jó é o modelo de paciência no Antigo Testamento, a paciência de Jesus sublinha a sua tolerância para com o pecador. A paciência é fruto do Espírito, tal como o amor. Suportando pacientemente as limitações alheias devemos refletir sobre as nossas que também são um peso para os outros.
- Orar (rogar a Deus pelos vivos e defuntos). A oração tem profunda relação não só com Deus, mas com a vida. Ela traduz nossa comunhão eclesial que nos leva a rezar uns pelos outros, e também pelos que já partiram, pois em nenhum momento se interrompe essa união, já que cremos na ressurreição e expressa a nossa comunhão com os santos. A oração de intercessão prepara e dispõe para viver e aceitar a vontade de Deus, seja ela qual for.
    Pelas obras de misericórdia se testemunha de maneira concreta o amor preferencial pelos pobres, que nos lembra o Papa Francisco, não é opcional, mas uma questão básica do Evangelho. A opção e o amor preferencial pelos pobres implicam uma percepção e compreensão das diversas classes de pobreza às quais se referem as obras de misericórdia corporais e espirituais. A pobreza mais elementar é a de ordem física ou econômica que incluem não só as quatro primeiras obras corporais, mas também a falta de trabalho e de emprego, as doenças e incapacidades graves. Temos a pobreza cultural com o analfabetismo, escassez de oportunidades de formação comprometendo o futuro do indivíduo e gerando a exclusão social e cultural. Tal pobreza contemplam as três primeiras obras espirituais. A pobreza social situa-se no campo da solidão e isolamento, das perdas, das dificuldades de comunicação social, da discriminação e marginalização, etc. Tal realidade é contemplada nas três últimas obras corporais e na quinta e sexta espirituais. Por fim temos a pobreza espiritual e de alma, como a desorientação, o vazio interior, o desconsolo e o desespero sobre o sentido da própria existência. A justiça maior do Reino que buscamos viver e sobre a qual seremos julgados não incluem tanto os mandamentos divinos, mas o bem que somos capazes de fazer. Da doação e do serviço ao modelo de Jesus, pois a misericórdia supera a justiça.


 Pe. João Bosco Vieira Leite