Os Salmos da Misericórdia - Parte 4 (final)

Continuação da reflexão dos Salmos da Misericórdia

Proposta: antes de ler a presente reflexão, faça uma leitura orante do salmo 92 em sua Bíblia.

7. Salmo 92 (Cântico. Para o dia de sábado). Este salmo é um típico exemplo de hino e pode ser subdividido da seguinte forma:
Vv. 2-4. Convite a louvar o Senhor. A bondade da ação de graças dirigida a Deus no cântico não para (v. 3): do romper da manhã e durante toda a noite. A bondade e a fidelidade são atributos divinos que são louvados. O imaginário do saltério recorre a instrumentos musicais para descrever a alma do louvor, no qual o canto e a música se harmonizam para exprimir a alegria do espírito do orante.
Vv. 5-14. Corpo do hino. Os vv. 5 e 10 marcam a divisão em duas estrofes do corpo laudatório:
Vv. 5-9. O Senhor é mais forte do que os malfeitores. Os dois primeiros versículos (5-6) concentram-se no Senhor. Ele é o motivo de alegria para o orante, por causa de suas maravilhas e da obra de suas mãos, segundo o estereótipo da sua ação como Criador. Mas a experiência do salmista (vv. 7-8) não é universal, no sentido de que não é experienciada por todos os seus semelhantes; pelo contrário: o homem insensato não a conhece e o ignorante não a compreende. O juízo sobre a sorte deles é claro: como a erva tem vida breve, assim a vitalidade dos malfeitores é somente um fenômeno momentâneo. À brevidade da sua vida sobre a terra corresponde, por acréscimo, uma ruína eterna. A superioridade do Senhor não teme o obscurecimento momentâneo do seu projeto, porque Ele, do alto de sua posição, tudo domina. Ele é excelso, substantivo, com conotações históricas e mitológicas: o maior entre todos os deuses, o inatingível, o imbatível.
Vv. 10-14. Depois das declarações do v. 8, reafirma-se a clara convicção de que os malfeitores – aqui chamados de ‘inimigos’, confirmando o perfil negativo que até aqui se foi traçado -, serão eliminados e dispersos (v. 10). Continuando a analogia com a erva do campo, diz-se que eles perecerão e serão dispersos. A imagem do búfalo (v. 11) é particularmente evocativa. O orante, que recupera as próprias convicções de fé perante o possível descrédito representado pelos malfeitores, é apresentado como um búfalo no auge de sua força muscular, animal indômito que não se sujeita a ser utilizado na agricultura e cuja ferocidade o faz levar sempre a melhor sobre os inimigos. A unção (v. 11) tonifica o músculo, fá-lo mais esplendoroso e preparado para a batalha. Da descrição desta força da natureza passa-se ao contexto totalmente humano do desafio entre inimigos (v. 12): o olhar lançado contra o próprio adversário exprime coragem e desdém. O segundo símbolo que domina o salmo é a palmeira (vv. 13-14). A ênfase se dirige não tanto para os frutos, mas para o vigor, em coerência com a outra imagem, a do búfalo. A proximidade ao cedro do Líbano confirma a ideia do poder que caracteriza o justo, que está fixo, bem plantado como um mastro extraído do tronco desta planta. A particularidade destas duas árvores está no lugar em que foram plantadas, porque embeleza o átrio do Templo. A mensagem parece ser a seguinte: somente se o orante permanecer no espaço da fé pode desfrutar da seiva que provém do Senhor e receber estabilidade.
Vv. 15-16. Estes dois versículos encerram a composição que, segundo o gênero literário do hino, deveria servir para reiterar o convite ao louvor. Aqui tal convite aparece de leve, se bem que presente. Completa-se o ciclo vegetativo iniciado com o florescimento (vv. 13-14), porque se mencionam os frutos da velhice, enquanto se sublinha novamente o vigor da palma e do cedro (v. 15). No final, o salmista abre o jogo: não se pode atribuir à responsabilidade divina a desgraça do justo e o favor de que goza, por sua vez, o malfeitor; o Senhor é reto e demonstra-o fortalecendo o justo na fé, inserindo-o numa relação vital com Ele, libertando-o das areias movediças da incredulidade.  

Os Salmos da Misericórdia - Parte 3

Continuação da reflexão sobre os Salmos da Misericórdia

Proposta: antes de ler a presente reflexão, faça uma leitura orante dos salmos 51 e 57 em sua Bíblia

5. Salmo 51. O mais famoso salmo penitencial recitado por Davi depois de cometer o adultério e denunciado por Natã (2Sm 12,1-14).
Vv. 3-11. Confissão da culpa e pedido de perdão. Aqui se descreve o estado de alma do penitente que, reconhecendo as suas transgressões, invoca a misericórdia divina.
Vv. 3-4: O pedido de purificação. O pecado é mencionado com três nomes diferentes, para exprimir a totalidade de sua transgressão. Pede-se que estes três pecados sejam, respectivamente, apagados, lavados e purificados. O orante invoca o pleno perdão divino, recordando o amplo leque de pecado e fazendo apelo ao amor misericordioso de Deus, ou seja, da sua fidelidade amorosa.
Vv. 5-8: A confissão do pecado.  Após o pedido de perdão, o primeiro ato do penitente é reconhecer o seu pecado. Tomar consciência da própria condição sem a esconder exprime a atitude de quem se dispõe a reconciliação. O v. 7 repete a profissão, por parte do orante, do seu estado de pecado. Ele está esmagado por esta realidade negativa desde que foi concebido. Ao longo da história da interpretação, com efeito, este versículo foi interpretado como prova de impureza da união sexual até mesmo no matrimônio. Ao que parece o texto não pretende dizer tal coisa, mas intensifica a perspectiva do penitente, que adverte uma arcaica e conatural propensão para o pecado. Mas também é verdade que Deus lhe pode doar sapiência para o orientar numa nova existência (v. 8).
Vv. 9-11: Invocação de purificação. A ligação clássica pecado-castigo explica o estado de bem-estar descrito no v. 10: se o pecado provoca a aflição, mesmo física, quando a pessoa é perdoada, é lógico que experimente a alegria e a saúde em todas as dimensões. Se o pecado faz do homem um esqueleto, o perdão enche-lhe de carne (cf. Ez 37). Por isso, reitera-se o pedido de misericórdia que percorre esta primeira parte do salmo, pedindo a Deus, depois de ter considerado as suas mazelas, que não as leve em consideração.
Vv. 12-21. Súplica de uma nova relação com Deus. Uma vez perdoado, a força que deriva dessa nova condição o leva a busca de uma nova relação.
Vv. 12-14: Coração e Espírito: A presença (a face) de Deus e o seu Espírito Santo são, por isso, imagens da mesma pessoa divina que de maneira performativa se volta benevolente para o penitente.
Vv. 15-19: A promessa de um compromisso. Como acontece quase sempre nas súplicas, o orante propõe-se assumir um compromisso que confirme as suas intenções. O aleluia (v.17) dirigido a Deus é a melhor oferta que se lhe pode fazer; vale mais do que os holocaustos e os sacrifícios rituais. Tudo é novo na vida de quem experimentou o perdão: coração, espírito, ossos, boca, lábios, língua. Nos vv. 18-19 formula-se o proposto de não se deter apenas num culto exterior.
Vv. 20-21: Final comunitário. Os dois últimos versículos são um acréscimo do tempo do exílio ou do imediato pós-exílio. Como muitas vezes nos salmos, a comunidade chama a atenção para a necessidade de atualizar o conteúdo do poema, relendo-o à luz dos acontecimentos que marcam a história. A menção aqui é a exílio da Babilônia. A releitura comunitária do salmo chega à consideração de que, se durante o exílio a matéria do sacrifício era representado pelo choro amargo (Sl 137), agora é o momento de uma liturgia mais pura e, portanto, mais agradável, porque inspirada por um coração humilhado.

6. Salmo 57. Este salmo apresenta-se como uma súplica dirigida a Deus. Faz referência à fuga de Davi das mãos do rei Saul (1Sm 24); é um testemunho vivo dos sentimentos de angústia e confiança vividos naquele momento. A estrutura da composição é muito simples, podendo ser divido em duas partes, intercalado por um refrão:
Vv. 2-6. Súplica. Abre-se num apelo suplicante, em busca de abrigo, refúgio, para este se serve da bela imagem das asas, para indicar que quando o perigo vem de baixo (dos inimigos) o Senhor eleva para o alto, longe das insídias dos homens.
V. 4. As duas asas sob as quais o orante encontra proteção são o amor misericordiosos e a fidelidade, uma dupla que exprime a intimidade da natureza divina na história dos homens; quando ele se revela, o faz manifestando o poder inspirado no amor.
V. 5. A segunda imagem é do leão, que tem a ver com a linguagem bélica. A referência ao estar deitado em meio faz referência aos inimigos que ocupam o mesmo espaço vital. Estes podem ser os piores.
V. 6. Um refrão fecha a primeira parte. Recorrendo ao simbolismo cósmico-espacial do céu e da terra, o salmista exprime o poder divino que se estende em altura e profundidade, um modo para dizer que é ilimitado. Neste ponto da composição, o versículo apresenta-se como uma invocação por parte de quem se encontra em dificuldades.
Vv. 7-12. Ação de graças. A segunda parte mistura motivos sapienciais, desde a imagem da rede às imagens da alegria e do canto típicas do hino como convite ao louvor, e conclui com o refrão do v. 12, que serve de antífona final.
V. 7. A lei do contraste encontra-se admiravelmente neste versículo: o mal se volta, antes ou depois, contra o seu autor. O salmista pede justiça e quer ser subtraído às garras dos seus inimigos. Neste versículo, confessa a sua confiança na forma de Deus agir porque sabe que quem faz o mal será, no fim, vítima do malefício perpetrado.
Vv. 8-9. Sublinha-se a solidez do que o orante adverte, juntamente com a vontade resoluta de exprimir de tal estado de alma inspirado na alegria. O coração firme é uma expressão que declara a nova realidade do penitente, é quase como um renascer.
Vv. 10-11. Depois do convite, entoa-se o canto. Podemos vislumbrar um duplo movimento de louvor: um vertical, que tende a atingir o céu e, com ele, o ponto mais afastado e inatingível (v.11); o outro, horizontal, voltado para todos os povos da terra.
V. 12. O refrão encerra a segunda estrofe e todo o salmo, colocando-se como selo das alturas místicas já atingidos pelo orante. O salmo não diz se ele foi libertado dos seus inimigos, mas contempla a misericórdia divina, quase se esquecendo de sua dor; poder-se-ia dizer: não importa se os inimigos fazem ainda ouvir os seus ruídos ameaçadores, o que importa é o amor ilimitado do Senhor, que é a melhor garantia para o fiel em dificuldade.

Os Salmos da Misericórdia - Parte 2

Continuação da reflexão sobre os Salmos da Misericórdia

Proposta: antes de ler a presente reflexão, faça uma leitura orante dos salmos 41,42 e 43 em sua Bíblia.

3. Salmo 41. Neste salmo domina o tom da súplica: um doente dirige-se ao Senhor para ser liberto de sua enfermidade, na sólida certeza de que a sua oração será atendida, porque o Senhor é piedoso. Podemos dividir esse poema em quatro partes.
Vv. 2-4. Hino sapiencial. É um bem aventurado, aquele que pode se aproximar do Senhor com confiança, pois goza de sua proteção nos momentos mais difíceis. Assim se proclama feliz quem ama a Deus e se faz solidário com o próximo.
Vv. 5-10. Lamento contra o inimigo. A relação delito-castigo aparece nas palavras do orante, que invoca sobre si o perdão divino: reconhecendo, pois, a própria culpa, ele espera a sua cura. Ele não parece preocupado com o castigo divino, pois confia em Deus, mas teme a presença dos inimigos. A falsidade desses supostos amigos torna particularmente desagradável sua visita, até porque eles, ao saírem da casa do doente, desafogam a sua maledicência, pois julgam que ele esteja doente por própria culpa. Quando um amigo atraiçoa, há sempre um misto de surpresa e de desilusão. Os gestos de intimidade (comer juntos) são evocados com particular angústia e lidos à luz da nova situação de solidão.
Vv. 11-13. Profissão de fé. O salmista tem plena fé em Deus, por ter sido liberto dessa condição indigna. Por trás dessa confiança há também o desejo de que Deus retribua à tal maldade.
V. 14. Releitura comunitária. A experiência única e irrepetível do orante é acolhida no patrimônio de fé da comunidade e consignada à oração de todos. Neste versículo, a bênção dirigida ao Senhor e a menção de Israel fecham a composição, conferindo-lhe um tom positivo e doxológico (= de louvor).

4. Salmos 42 e 43. Originalmente formavam um único salmo, algo comprovado por alguns elementos que se repetem. Podemos subdividi-lo em três momentos:
42,1-6: Nostalgia do passado. O poeta projeta a sua imagem num animal, o cervo, para falar de sua busca inquieta de Deus, mas quando ele poderá contemplar a face de Deus? O salmista encontra-se afastado de Deus, talvez esteja no exílio, já que se recorda de suas peregrinações ao Templo. Ele descreve um estado de desgaste interior. As lágrimas como alimento são uma metáfora da dor profunda e prolongada. Há uma pergunta por Deus, em tom sarcástico que vem pronunciado, provavelmente, pelos opressores (babilônicos). Isso torna ainda mais penosa a condição do orante. No v. 6 ele descreve seu estado de tristeza e desconforto, mas logo depois ele se reabilita diante de Deus, pois pode continuar a louvá-lo.
42,7-12: O presente amargo. A tristeza da condição presente (do exílio) torna ainda mais áspera a recordação do passado. O elemento aquático reaparece, mas de modo negativo. Foi Deus que os levou para longe da terra prometida, como punição por seu pecado. Mas em meio dos castigos e tormentos, aparece a misericórdia divina como dom cotidiano que o Senhor oferece ao seu fiel, por isso ele louva a Deus, ao mesmo tempo em que eleva os seus questionamentos.
43,1-5: Com uma linguagem tipicamente forense, o orante pede justiça a Deus, porque se sente falsamente acusado. A luz e a verdade divina são como duas asas que podem leva-lo à montanha de Deus, ao seu templo e ao seu altar; retornam as imagens litúrgicas do início. Ele sabe que Deus agirá e isto torna menos amarga a condição de exilado, porque o Senhor habita no coração do orante, fazendo já sentir a sua presença. 

Os Salmos da Misericórdia


     Dentro do material produzido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização para o ano Santo da Misericórdia, contemplam-se os Salmos que traduzem a misericórdia divina. Os salmos tem um significado expressivo na tradição religiosa não só dos judeus, mas também dos cristãos; uma das heranças que trazemos da piedade e da liturgia judaica. O objetivo do Conselho Pontifício é oferecer um instrumento pastoral para ajudar na reflexão dos peregrinos.
     Antes de comentar os chamados salmos de misericórdia, segue uma apresentação geral desse livro e da importância dos salmos na vida dos fiéis e da Igreja que utilizamos na nossa manhã de formação a título de introdução.

O Saltério, ontem e hoje. O texto hebraico dos Salmos foi traduzido para o grego, para o uso dos judeus da Diáspora – em meados do século II a.C. – a Septuaginta. Uma descontinuidade na numeração provém do fato de alguns salmos de uma das tradições encontrarem-se cindidos em dois pela outra, por exemplo, o salmo 9 e 10 da bíblia hebraica corresponde ao 9 da tradução Grega e Vulgata; o salmo 116 da bíblia hebraica corresponde ao 114 e 115 do Grego e da Vulgata.
- Israel, através da sua história muitas vezes tormentosa, continuará a recitar, a meditar e a cantar o saltério, por ocasião de suas festas nacionais e religiosas, no ritual sinagogal, no lar – tanto que se pode escrever que os judeus nascem com este livro nas entranhas.
- No NT, os salmos são citados mais de 100 vezes.

- A essa longa história corresponde toda uma história espiritual. Gerações de crentes, judeus e cristãos de todas as confissões, têm inspirado sua oração e sua vida nos salmos. Esses textos bíblicos têm suscitado homilias e comentários, vivificado a piedade individual e coletiva, provocado pesquisas exegéticas. A renovação litúrgica levada a efeito nas igrejas cristãs favorece a difusão da coletânea dos “Louvores”. É certo que a piedade autêntica brota do coração e não se nutre de estereótipos literários. Mas o saltério não nos oferece orações já feitas: oferece-nos orações a ser feitas, sugere-nos “cantos novos”.
- Os salmos são a palavra de Deus; palavra que diz enquanto um homem, arrebatado por ele, diz sua palavra humana. Portanto, eles são revelações que levam à salvação. Mas isto em uma forma particular, ou seja, a da oração. Não procedem da experiência de um espírito humano – por exemplo, de um profeta – que teria conhecido a verdade divina e dito: “Assim fala o Senhor”, mas da emoção de um homem que se dirige a Deus em oração. É deste modo que os salmos devem ser propriamente interpretados; não pela leitura, pela consideração, pelo estudo, mas deixando-nos levar por eles até Deus em seu movimento.
- O ofício divino é uma liturgia da palavra e, como tal, consiste essencialmente em um diálogo entre Deus e o seu povo: ele nos fala pelas leituras, e nós lhe falamos com hinos e salmos. Na Eucaristia e nos demais sacramentos, a ação estritamente sacramental é precedida por uma liturgia da palavra, na qual o principal são as leituras, e o secundário os salmos, ou cantos com os quais respondemos a elas. Em contrapartida, na Liturgia das Horas, por ser acima de tudo oração de louvor e súplica, a primazia é dos salmos, aos quais Deus responde pelas leituras. Por isso é que as leituras da Liturgia das Horas (LH) – exceto no ofício significativamente chamado de Leitura – são muito mais breves que a salmodia.
Assim, do conjunto de elementos que integram a LH – salmos, leituras, antífonas, responsórios, hinos, preces, coletas etc. – o mais importante, sem dúvida alguma, é a salmodia. O Ofício divino é, fundamentalmente, uma salmodia adornada com alguns outros elementos.
Ao tratar da reforma do Ofício, já antes do Vaticano II, não faltaram vozes sugerindo que a Igreja deveria ter a coragem de prescindir dos salmos, por ser literatura de um povo muito distante de nós, tanto cultural como religiosamente falando. Os salmos seriam pouco apropriados para expressar a oração especificamente cristã. Mas essas vozes acabaram calando. A Igreja do concílio e do pós-concílio não se separou da tradição bimilenar que tem o Saltério como seu grande livro e escola de oração. A Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada liturgia, nem chega a levantar a questão, mas a considera definitivamente solucionada. Na Ordenação Geral da Liturgia das Horas, n. 100, se diz “na Liturgia das Horas a Igreja ora servindo-se em boa medida daqueles cânticos insignes que, sob a inspiração do Espírito Santo, compuseram os autores sagrados no Antigo Testamento. Pois, por sua origem, têm a virtude de elevar para Deus a mente dos homens, provocam neles sentimentos santos e piedosos, ajudam-nos de modo admirável a dar graças nos momentos de alegria, e lhes proporcionam conforto e firmeza de espírito na adversidade”.

1. A misericórdia é uma das características divinas que o saltério mais evidencia. A palavra misericórdia possui uma forte riqueza de significado, por isso podemos encontra-la traduzida por: ternura, graça, indulgência, bondade, benevolência, amor. O que revela um amor divino ‘entranhado’. No mundo bíblico, a parte mais íntima em que têm sede os sentimentos é precisamente o ventre/seio, e isso cria uma forte aproximação entre a Misericórdia e a geração da vida. Nesses salmos que se seguem não só expressam uma riqueza antropológica do homem, mas espelha também o rosto com que Deus se deu a conhecer, Ele que fala uma linguagem que todos podem entender e que se entretém com os homens, falando-lhes como amigos (cf. Dei verbum n. 2). Seria bom acompanhar o breve comentário com o texto do respectivo salmo.

2. Salmo 25. Atribuído a Davi, a composição apresenta-se como uma súplica individual: o orante sente-se atormentado pelos seus inimigos e dirige-se confiantemente a Deus, para que o livre dessa situação. A expressão: “A ti Senhor minha alma se eleva” ao início do salmo traduz a atitude exigida de quem ora: ‘elevar-se’ não só com a voz, mas com todo o seu ser para alcançar a esfera divina.
- Nos versículos 2 e 3 o salmista professa a sua confiança em Deus, exprimindo o desejo de não ficar decepcionado; as razões de tal esperança não se encontram ulteriormente especificadas neste versículo, porque isso será feito ao longo de todo o poema. 
- Vv. 4-5. Aparecem termos relativos ao caminho, à estrada, às veredas, aos passos que se dão, tal como parece claro o convite a Deus para que seja luz e nos conduza. Tal metáfora é uma alusão à conduta moral que o orante deseja aprender diretamente de Deus.
- Vv. 6-7. De um modo imperativo (‘lembra-te’) o orante faz apelo direto à misericórdia divina e à bondade de Deus, um estilo bíblico de súplica. Ao mesmo tempo ele parece ‘orientar’ a Deus em como proceder para com ele. O efeito desta inversão de papeis é a maior tomada de consciência do próprio pecado, que assume mais intensidade precisamente no confronto coma misericórdia divina. O salmista, já ancião, conhece o seu estado de grave transgressão.
- Vv. 8-11. Chegamos ao coração do nosso salmo. O tema do caminho e da aliança constitui o traço específico desta estrofe. De forma repetida são descritas as qualidades que pertencem a Deus (bondade, retidão, amor, fidelidade), reiterando também o conceito de Deus como mestre (vv. 8-9) e o convite ao perdão já evocado na estrofe precedente (v. 11). Os alunos aos quais o Senhor dirige suas lições são os pecadores e os pobres. O tema da aliança é importante para o salmista, porque ele sabe que a misericórdia divina está ligada ao respeito pela aliança. O orante, embora consciente do seu pecado, abre-se com a confiança dos ‘pequeninos’ à Misericórdia divina esperando o perdão.
- Vv. 12-15. Volta novamente o tema do temor do Senhor e da aliança. A reflexão move-se nas coordenadas teológicas clássicas que ligam a fidelidade de Deus ao bem-estar (saúde e descendência), que se liga ao tema da retribuição dentro do Antigo Testamento. O salmista declara que a aliança torna o Senhor tão íntimo do seu fiel, ao ponto de não lhe esconder nada (‘A intimidade do Senhor é para aqueles que o temem’).
- Vv. 16-14. A oração chega à invocação direta de Deus e da sua piedade. A súplica do salmista quer chamar a atenção sobre a sua dupla condição miserável (submerso no pecado e vulnerável ante os inimigos). Na realidade o que mais angustia o salmista parece ser o pecado: se é verdade que o inimigo está no exterior, é igualmente verdade que assusta muito mais a condição de privação da graça de Deus.
- Vv. 20-21. No fim do salmo, emergem os estados de alma que abriram o poema, mas com uma diferença: agora, o ancião orante declarou abertamente a sua condição e pode com maior confiança abrir-se à misericórdia divina, esperando o perdão. Manifestar o próprio pecado, de fato, é a precondição para obter o perdão.
- V. 22. Uma conclusão acrescentada pela comunidade orante que acolhe o grito de um sofredor e sente-o como particularmente condizente com sua própria condição.