Dentro
do material produzido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova
Evangelização para o ano Santo da Misericórdia, contemplam-se os Salmos que
traduzem a misericórdia divina. Os salmos tem um significado expressivo na
tradição religiosa não só dos judeus, mas também dos cristãos; uma das heranças
que trazemos da piedade e da liturgia judaica. O objetivo do Conselho
Pontifício é oferecer um instrumento pastoral para ajudar na reflexão dos
peregrinos.
Antes
de comentar os chamados salmos de misericórdia, segue uma apresentação geral
desse livro e da importância dos salmos na vida dos fiéis e da Igreja que
utilizamos na nossa manhã de formação a título de introdução.
O Saltério, ontem e hoje. O texto
hebraico dos Salmos foi traduzido para o grego, para o uso dos judeus da
Diáspora – em meados do século II a.C. – a Septuaginta. Uma descontinuidade na
numeração provém do fato de alguns salmos de uma das tradições encontrarem-se
cindidos em dois pela outra, por exemplo, o salmo 9 e 10 da bíblia hebraica
corresponde ao 9 da tradução Grega e Vulgata; o salmo 116 da bíblia hebraica
corresponde ao 114 e 115 do Grego e da Vulgata.
-
Israel, através da sua história muitas vezes tormentosa, continuará a recitar,
a meditar e a cantar o saltério, por ocasião de suas festas nacionais e
religiosas, no ritual sinagogal, no lar – tanto que se pode escrever que os
judeus nascem com este livro nas entranhas.
-
No NT, os salmos são citados mais de 100 vezes.
- A essa longa história corresponde toda uma história
espiritual. Gerações de crentes, judeus e cristãos de todas as confissões, têm
inspirado sua oração e sua vida nos salmos. Esses textos bíblicos têm suscitado
homilias e comentários, vivificado a piedade individual e coletiva, provocado
pesquisas exegéticas. A renovação litúrgica levada a efeito nas igrejas cristãs
favorece a difusão da coletânea dos “Louvores”. É certo que a piedade autêntica
brota do coração e não se nutre de estereótipos literários. Mas o saltério não
nos oferece orações já feitas: oferece-nos orações a ser feitas, sugere-nos
“cantos novos”.
- Os salmos são a palavra de Deus; palavra que diz enquanto
um homem, arrebatado por ele, diz sua palavra humana. Portanto, eles são
revelações que levam à salvação. Mas isto em uma forma particular, ou seja, a
da oração. Não procedem da experiência de um espírito humano – por exemplo, de
um profeta – que teria conhecido a verdade divina e dito: “Assim fala o
Senhor”, mas da emoção de um homem que se dirige a Deus em oração. É deste modo
que os salmos devem ser propriamente interpretados; não pela leitura, pela
consideração, pelo estudo, mas deixando-nos levar por eles até Deus em seu
movimento.
- O ofício divino é uma liturgia da palavra e, como tal,
consiste essencialmente em um diálogo entre Deus e o seu povo: ele nos fala
pelas leituras, e nós lhe falamos com hinos e salmos. Na Eucaristia e nos
demais sacramentos, a ação estritamente sacramental é precedida por uma
liturgia da palavra, na qual o principal são as leituras, e o secundário os
salmos, ou cantos com os quais respondemos a elas. Em contrapartida, na
Liturgia das Horas, por ser acima de tudo oração de louvor e súplica, a
primazia é dos salmos, aos quais Deus responde pelas leituras. Por isso é que
as leituras da Liturgia das Horas (LH) – exceto no ofício significativamente
chamado de Leitura – são muito mais breves que a salmodia.
Assim, do conjunto de elementos que integram a LH – salmos,
leituras, antífonas, responsórios, hinos, preces, coletas etc. – o mais
importante, sem dúvida alguma, é a salmodia. O Ofício divino é,
fundamentalmente, uma salmodia adornada com alguns outros elementos.
Ao tratar da reforma do Ofício, já antes do Vaticano II, não
faltaram vozes sugerindo que a Igreja deveria ter a coragem de prescindir dos
salmos, por ser literatura de um povo muito distante de nós, tanto cultural
como religiosamente falando. Os salmos seriam pouco apropriados para expressar
a oração especificamente cristã. Mas essas vozes acabaram calando. A Igreja do
concílio e do pós-concílio não se separou da tradição bimilenar que tem o
Saltério como seu grande livro e escola de oração. A Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a sagrada
liturgia, nem chega a levantar a questão, mas a considera definitivamente
solucionada. Na Ordenação Geral da
Liturgia das Horas, n. 100, se diz “na Liturgia das Horas a Igreja ora
servindo-se em boa medida daqueles cânticos insignes que, sob a inspiração do
Espírito Santo, compuseram os autores sagrados no Antigo Testamento. Pois, por
sua origem, têm a virtude de elevar para Deus a mente dos homens, provocam
neles sentimentos santos e piedosos, ajudam-nos de modo admirável a dar graças
nos momentos de alegria, e lhes proporcionam conforto e firmeza de espírito na
adversidade”.
1. A
misericórdia
é uma das características divinas que o saltério mais evidencia. A palavra
misericórdia possui uma forte riqueza de significado, por isso podemos
encontra-la traduzida por: ternura, graça, indulgência, bondade, benevolência,
amor. O que revela um amor divino ‘entranhado’. No mundo bíblico, a parte mais
íntima em que têm sede os sentimentos é precisamente o ventre/seio, e isso cria
uma forte aproximação entre a Misericórdia e a geração da vida. Nesses salmos
que se seguem não só expressam uma riqueza antropológica do homem, mas espelha
também o rosto com que Deus se deu a conhecer, Ele que fala uma linguagem que
todos podem entender e que se entretém com os homens, falando-lhes como amigos
(cf. Dei verbum n. 2). Seria bom
acompanhar o breve comentário com o texto do respectivo salmo.
2. Salmo
25.
Atribuído a Davi, a composição apresenta-se como uma súplica individual: o
orante sente-se atormentado pelos seus inimigos e dirige-se confiantemente a
Deus, para que o livre dessa situação. A expressão: “A ti Senhor minha alma se
eleva” ao início do salmo traduz a atitude exigida de quem ora: ‘elevar-se’ não
só com a voz, mas com todo o seu ser para alcançar a esfera divina.
- Nos versículos 2 e 3 o salmista professa a sua confiança
em Deus, exprimindo o desejo de não ficar decepcionado; as razões de tal
esperança não se encontram ulteriormente especificadas neste versículo, porque
isso será feito ao longo de todo o poema.
- Vv. 4-5. Aparecem termos relativos ao caminho, à estrada,
às veredas, aos passos que se dão, tal como parece claro o convite a Deus para
que seja luz e nos conduza. Tal metáfora é uma alusão à conduta moral que o
orante deseja aprender diretamente de Deus.
- Vv. 6-7. De um modo imperativo (‘lembra-te’) o orante faz
apelo direto à misericórdia divina e à bondade de Deus, um estilo bíblico de
súplica. Ao mesmo tempo ele parece ‘orientar’ a Deus em como proceder para com
ele. O efeito desta inversão de papeis é a maior tomada de consciência do
próprio pecado, que assume mais intensidade precisamente no confronto coma
misericórdia divina. O salmista, já ancião, conhece o seu estado de grave
transgressão.
- Vv. 8-11. Chegamos ao coração do nosso salmo. O tema do
caminho e da aliança constitui o traço específico desta estrofe. De forma
repetida são descritas as qualidades que pertencem a Deus (bondade, retidão,
amor, fidelidade), reiterando também o conceito de Deus como mestre (vv. 8-9) e
o convite ao perdão já evocado na estrofe precedente (v. 11). Os alunos aos
quais o Senhor dirige suas lições são os pecadores e os pobres. O tema da
aliança é importante para o salmista, porque ele sabe que a misericórdia divina
está ligada ao respeito pela aliança. O orante, embora consciente do seu
pecado, abre-se com a confiança dos ‘pequeninos’ à Misericórdia divina
esperando o perdão.
- Vv. 12-15. Volta novamente o tema do temor do Senhor e da
aliança. A reflexão move-se nas coordenadas teológicas clássicas que ligam a fidelidade
de Deus ao bem-estar (saúde e descendência), que se liga ao tema da retribuição
dentro do Antigo Testamento. O salmista declara que a aliança torna o Senhor
tão íntimo do seu fiel, ao ponto de não lhe esconder nada (‘A intimidade do
Senhor é para aqueles que o temem’).
- Vv. 16-14. A oração chega à invocação direta de Deus e da
sua piedade. A súplica do salmista quer chamar a atenção sobre a sua dupla
condição miserável (submerso no pecado e vulnerável ante os inimigos). Na
realidade o que mais angustia o salmista parece ser o pecado: se é verdade que
o inimigo está no exterior, é igualmente verdade que assusta muito mais a
condição de privação da graça de Deus.
- Vv. 20-21. No fim do salmo, emergem os estados de alma que
abriram o poema, mas com uma diferença: agora, o ancião orante declarou
abertamente a sua condição e pode com maior confiança abrir-se à misericórdia
divina, esperando o perdão. Manifestar o próprio pecado, de fato, é a
precondição para obter o perdão.
- V. 22. Uma conclusão acrescentada pela comunidade orante
que acolhe o grito de um sofredor e sente-o como particularmente condizente com
sua própria condição.