Os Salmos da Misericórdia - Parte 3

Continuação da reflexão sobre os Salmos da Misericórdia

Proposta: antes de ler a presente reflexão, faça uma leitura orante dos salmos 51 e 57 em sua Bíblia

5. Salmo 51. O mais famoso salmo penitencial recitado por Davi depois de cometer o adultério e denunciado por Natã (2Sm 12,1-14).
Vv. 3-11. Confissão da culpa e pedido de perdão. Aqui se descreve o estado de alma do penitente que, reconhecendo as suas transgressões, invoca a misericórdia divina.
Vv. 3-4: O pedido de purificação. O pecado é mencionado com três nomes diferentes, para exprimir a totalidade de sua transgressão. Pede-se que estes três pecados sejam, respectivamente, apagados, lavados e purificados. O orante invoca o pleno perdão divino, recordando o amplo leque de pecado e fazendo apelo ao amor misericordioso de Deus, ou seja, da sua fidelidade amorosa.
Vv. 5-8: A confissão do pecado.  Após o pedido de perdão, o primeiro ato do penitente é reconhecer o seu pecado. Tomar consciência da própria condição sem a esconder exprime a atitude de quem se dispõe a reconciliação. O v. 7 repete a profissão, por parte do orante, do seu estado de pecado. Ele está esmagado por esta realidade negativa desde que foi concebido. Ao longo da história da interpretação, com efeito, este versículo foi interpretado como prova de impureza da união sexual até mesmo no matrimônio. Ao que parece o texto não pretende dizer tal coisa, mas intensifica a perspectiva do penitente, que adverte uma arcaica e conatural propensão para o pecado. Mas também é verdade que Deus lhe pode doar sapiência para o orientar numa nova existência (v. 8).
Vv. 9-11: Invocação de purificação. A ligação clássica pecado-castigo explica o estado de bem-estar descrito no v. 10: se o pecado provoca a aflição, mesmo física, quando a pessoa é perdoada, é lógico que experimente a alegria e a saúde em todas as dimensões. Se o pecado faz do homem um esqueleto, o perdão enche-lhe de carne (cf. Ez 37). Por isso, reitera-se o pedido de misericórdia que percorre esta primeira parte do salmo, pedindo a Deus, depois de ter considerado as suas mazelas, que não as leve em consideração.
Vv. 12-21. Súplica de uma nova relação com Deus. Uma vez perdoado, a força que deriva dessa nova condição o leva a busca de uma nova relação.
Vv. 12-14: Coração e Espírito: A presença (a face) de Deus e o seu Espírito Santo são, por isso, imagens da mesma pessoa divina que de maneira performativa se volta benevolente para o penitente.
Vv. 15-19: A promessa de um compromisso. Como acontece quase sempre nas súplicas, o orante propõe-se assumir um compromisso que confirme as suas intenções. O aleluia (v.17) dirigido a Deus é a melhor oferta que se lhe pode fazer; vale mais do que os holocaustos e os sacrifícios rituais. Tudo é novo na vida de quem experimentou o perdão: coração, espírito, ossos, boca, lábios, língua. Nos vv. 18-19 formula-se o proposto de não se deter apenas num culto exterior.
Vv. 20-21: Final comunitário. Os dois últimos versículos são um acréscimo do tempo do exílio ou do imediato pós-exílio. Como muitas vezes nos salmos, a comunidade chama a atenção para a necessidade de atualizar o conteúdo do poema, relendo-o à luz dos acontecimentos que marcam a história. A menção aqui é a exílio da Babilônia. A releitura comunitária do salmo chega à consideração de que, se durante o exílio a matéria do sacrifício era representado pelo choro amargo (Sl 137), agora é o momento de uma liturgia mais pura e, portanto, mais agradável, porque inspirada por um coração humilhado.

6. Salmo 57. Este salmo apresenta-se como uma súplica dirigida a Deus. Faz referência à fuga de Davi das mãos do rei Saul (1Sm 24); é um testemunho vivo dos sentimentos de angústia e confiança vividos naquele momento. A estrutura da composição é muito simples, podendo ser divido em duas partes, intercalado por um refrão:
Vv. 2-6. Súplica. Abre-se num apelo suplicante, em busca de abrigo, refúgio, para este se serve da bela imagem das asas, para indicar que quando o perigo vem de baixo (dos inimigos) o Senhor eleva para o alto, longe das insídias dos homens.
V. 4. As duas asas sob as quais o orante encontra proteção são o amor misericordiosos e a fidelidade, uma dupla que exprime a intimidade da natureza divina na história dos homens; quando ele se revela, o faz manifestando o poder inspirado no amor.
V. 5. A segunda imagem é do leão, que tem a ver com a linguagem bélica. A referência ao estar deitado em meio faz referência aos inimigos que ocupam o mesmo espaço vital. Estes podem ser os piores.
V. 6. Um refrão fecha a primeira parte. Recorrendo ao simbolismo cósmico-espacial do céu e da terra, o salmista exprime o poder divino que se estende em altura e profundidade, um modo para dizer que é ilimitado. Neste ponto da composição, o versículo apresenta-se como uma invocação por parte de quem se encontra em dificuldades.
Vv. 7-12. Ação de graças. A segunda parte mistura motivos sapienciais, desde a imagem da rede às imagens da alegria e do canto típicas do hino como convite ao louvor, e conclui com o refrão do v. 12, que serve de antífona final.
V. 7. A lei do contraste encontra-se admiravelmente neste versículo: o mal se volta, antes ou depois, contra o seu autor. O salmista pede justiça e quer ser subtraído às garras dos seus inimigos. Neste versículo, confessa a sua confiança na forma de Deus agir porque sabe que quem faz o mal será, no fim, vítima do malefício perpetrado.
Vv. 8-9. Sublinha-se a solidez do que o orante adverte, juntamente com a vontade resoluta de exprimir de tal estado de alma inspirado na alegria. O coração firme é uma expressão que declara a nova realidade do penitente, é quase como um renascer.
Vv. 10-11. Depois do convite, entoa-se o canto. Podemos vislumbrar um duplo movimento de louvor: um vertical, que tende a atingir o céu e, com ele, o ponto mais afastado e inatingível (v.11); o outro, horizontal, voltado para todos os povos da terra.
V. 12. O refrão encerra a segunda estrofe e todo o salmo, colocando-se como selo das alturas místicas já atingidos pelo orante. O salmo não diz se ele foi libertado dos seus inimigos, mas contempla a misericórdia divina, quase se esquecendo de sua dor; poder-se-ia dizer: não importa se os inimigos fazem ainda ouvir os seus ruídos ameaçadores, o que importa é o amor ilimitado do Senhor, que é a melhor garantia para o fiel em dificuldade.